Bruxaria: trocando de pele como as Serpentes

Bruxaria: trocando de pele como as Serpentes


Ilustração por: The Art of Valin Mattheis

Á noite… Eu beijo a serpente em tuas lágrimas
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Sempre ouvi muitas pessoas falando sobre transformações quando o assunto tocasse os pálidos espectros dos pés da Arte Sem Nome.

Por inúmeras vezes escutei as mesmas pessoas falando sobre transformações da mesma forma, com os mesmos argumentos, durante tempos…o ciclo se renova e as falas continuam as mesmas. Nem mesmo “falar A Fala” tem se tornado possível para aqueles que não compreendem a fluidez e natureza cíclica da Arte em si. Nada mudou em tantos anos, nada mudou nas atitudes. As pessoas no geral não são as mesmas, mas o vazio em suas vozes continua o mesmo.

Hoje iremos falar um pouco sobre transformações dentro da bruxaria e o porquê de ser um assunto com uma grande relevância dentro da Arte.

Que possamos trocar de pele como a sábia Serpente e, como sua apoteose é o Dragão, que nossa Apoteose seja a de Deuses.

O simbolismo da Serpente é vasto e largamente usado por inúmeros grupos, tradições e religiões ao redor do mundo. Seus atributos estão normalmente ligados a sabedoria, inteligência, perspicácia, de natureza astuta, estratégia, furtividade, assassinatos, perigo, enganação, sensualidade, movimentos sinuosos e muitos outros. Além desses atributos citados, o que nos interessa aqui é sua capacidade de trocar de pele.

A Serpente está presente em inúmeras tradições, grupos e diferentes visões de mundo na Bruxaria. Podemos observar inclusive dentro do simbolismo católico atributos positivos com a serpente aparecendo em representações de Santas, como Nossa Senhora Desatadora dos nós, onde a Santa aparece em cima de uma Lua com uma Serpente aos seus pés; Imaculada Conceição que apresenta uma lua nos pés e também uma Serpente; Santa Marta, que aparece com um dragão enrolado aos seus pés; Santa Fátima que está em cima de uma Lua cheia e também com uma serpente aos seus pés… também temos representações Hindus com serpentes, como Shiva e Vishnu, assim como a de Demônios, como Astaroth e Purson.

Não vou tentar correlacionar nada e nem fazer afirmações quanto aos símbolos de cada representação e muito menos o que cada seguidor desses Deuses e entidades pensam sobre. temos que ir além, sempre além.

Uma coisa que aprendi com muitos anos é que quanto menos transformações importantes você passar na sua própria vida e Caminho, menos transformações você estará apto a realizar ao seu redor. Você não irá simplesmente dar aquilo que não tem.

Quando falamos em transformação, estamos falando em algo que muda seu mundo, seus pontos de vistas, que faz você entrar em pensamentos de auto-reflexões e auto-crítica…alguma coisa muda e muda de forma muito significativa, ao ponto de você mudar tanto externamente que outras pessoas, com certeza as mais próximas, vão acabar percebendo. Seu mundo muda. Aquilo que você pensava antes é destruído e o que lhe resta é tentar entender o que aconteceu.

Uma troca de pele é uma morte, como o Arcano XIII do Tarot. Um término doloroso, muitas vezes indesejado, as vezes inesperado, que muda toda uma situação na sua vida. No caso da Bruxaria, isso muda seus horizontes, como se você tivesse saído da Caverna de Platão e vislumbrado o sol pela primeira vez.

Essas transformações podem ser extremamente dolorosas; mas com o tempo e experiência, tendem-se a ser mais observadas do que sofridas, no que diz respeito a saber lidar com certas situações, transformações e términos de fases com mais sabedoria e entendimento.

Cria-se resiliência. Descobre-se resignação – não como submissão, mas como saber o seu lugar ou o seu papel. Instiga-se contestação e transgressão – acima inclusive de tudo que você mesmo aprendeu e acreditava ser certo!

Seus horizontes mudam de tonalidade. E depois de muitas transformações, você entende que o horizonte sempre foi o mesmo e que cada tonalidade que você enxergou, é apenas uma parte de sua composição.

Você estava enxergando o mundo em fragmentos. Você achava que tais fragmentos fossem a verdade em si, sem imaginar que cada um desses pequenos fragmentos – tão pesados, tão incríveis e com tanto conteúdo – fosse apenas mais um fragmento e não uma totalidade. Seu universo tomba. Suas ideias ganham novas contestações, uma por uma, você vê o quanto eram limitadas, o quanto eram pobres. Você enxerga mais ao seu redor e suas referências mudam. Com o tempo, você fica mais cauteloso, pois entende que tudo isso que você é capaz de enxergar pode ser temporário, pequeno e que quanto mais você enxerga, mais você compreende que sabe menos, porém, sabe que pode esperar cada vez sempre mais. “Só sei que nada sei”, começa fazer mais sentido com os anos de Caminhada e de práticas mágicas.

A ideia de iniciação é similar, embora de uma complexidade muito além, pois envolve um mergulho em um Caminho de forma tanto espontânea quanto inesperada. Porém, muito além da percepção racional ou equiparativa, uma iniciação traz um universo totalmente novo. Muitas vezes não é percebido nos primeiros dias, mas normalmente ha uma reviravolta absurda em que muitas coisas caem por terra e muitas outras acabam surgindo “do nada”, independentemente do que lhe agrada, mas baseando-se no Caminho escolhido e nos compromissos firmados.

Muitas pessoas caem na ilusão de que “estão no controle”. Principalmente quando se trata de transformações, você NUNCA está no controle. Você não sabe exatamente o que esperar…nem mesmo de si mesmo. O melhor, em tais épocas delicadas, é sempre se manter perceptivo, com atenção. Observar mais, falar menos, ouvir mais. E antes de criticar outras pessoas, volte-se para dentro de si e suas atitudes. Antes de condenar outro, condene a si mesmo.

A experiência e si é sempre positiva. A adição nunca é totalmente perdida, mesmo quando transborda.

Diferente do que se pensa quando algo transborda do recipiente, percebe-se que o conteúdo deixa de estar limitado para banhar todo o receptáculo, desde o interior, passando pelo topo e lavando-o até os pés. Portando, algo que transborda, muitas vezes preenche muito mais do que apenas ao interior.


Ilustração por: The Art of Valin Mattheis

Normalmente um tolo é seguido por outros tolos. Incrivelmente isso é quase que uma Lei humana, por mais absurda que seja. Mera observação, mesmo que superficial já é o bastante. Talvez um tolo, esperto, seja seguido por desesperados ou perdidos. De qualquer forma, sabemos que a maioria das pessoas deseja alguém para seguir, como ovelhas. Procuram um pastor para serem guiadas em suas vidas ou caminhos… como um lobo, não poderia discordar menos e minimamente iria além: a ovelha é guiada cegamente pelo seu pastor; o Lobo é guiado pelo seu próprio instinto.

A cada transformação que passamos, as coisas parecem mais e ao mesmo tempo menos. As reações relativas ao dia-a-dia se tornam cada vez mais insignificantes, mesmo que toleráveis.

Por outro lado, questões complexas tendem a piorar ou a se resolver de vez. O tato e a observação podem fazer muita diferença, principalmente em movimentos rápidos das Destinos que mudam repentinamente tanto de direção quanto de velocidade e intensidade.

A troca de pele muda completamente o interior e exterior de um individuo. Muitas vezes isso pode não dar muito certo, pois a transformação, mesmo com bons objetivos, acaba-se tornando dolorosa e muitas vezes pode tirar uma parte da sanidade de alguém.

Isso ocorre quando a pessoa não possui estrutura para lidar com problemas que exigem muito mais do que simplesmente uma boa saúde física, mas sim, de saúde mental, força de caráter e de personalidade.

Muitas pessoas mundanas passam por algumas transformações genuínas durante a vida, mas a grande maioria não entende exatamente como passar por algumas situações ou de encarar o “novo mundo”, tendendo a retroceder pelo medo da mudança ou pela comodidade do que vivia antes de uma transformação ocorrer.

É comum ouvir “eu preciso mudar”, mas é mais comum ainda ver que ninguém realmente quer mudar. Mudar dói. Mudar dá trabalho. e aí caímos naquela velha ideia de que não adianta agir da mesma forma querendo resultados diferentes.

O Caminho da Arte sem Nome muitas vezes requer transformações, de várias naturezas. E o entendimento dos processos de transformações e de suas naturezas é o que traz poder ao bruxo. Ele entende como mudar, logo, entende como fazer mudar fora de si. Através de uma alquimia interna, o andarilho reorganiza todo o seu interior ou a sua própria vida e reconstrói tudo de forma diferente, melhor, usando seu interior e aprendendo a enxergar as ferramentas a sua volta para serem usadas de formas diferentes, para trazer resultados diferentes.

Além disso, também é possível transformar o próprio Destino e assim também acabar por transformar o destino de outras pessoas ou eventos.

Afinal, de que serve magia se você não irá alterar, mudar ou transformar a si mesmo e a sua volta?

Todo o processo também nos traz sabedoria e nos ajuda a lidar com muitas outras coisas na nossa vida, tanto as importantes quanto as mundanas. Não porque as situações serão iguais ou similares, mas sim, por sabermos como se dão as transformações e como podemos ou devemos nos portar para passarmos de forma positiva por tais processos. Além disso, mesmo que seja um processo desgastante e doloroso, sabemos enxergar sua natureza e usarmos a situação ao nosso favor, sem se desesperar e sem ficar perdido frente as possibilidades ou ainda falta de visão do que está ocorrendo.

Aconselho a todos aqueles que Andam o Caminho para que aprendam cada vez mais olhar para dentro de si mesmo e entender a relação de si mesmo com a natureza a sua volta, as situações da vida e do Caminho, os Deuses imortais e dos espíritos a nossa volta.

A transformação nunca vem por um simples processo e nem mesmo pela mera vontade mundana de querer passar por alguma transformação.

É resultado de trabalho árduo, complexo e de aprendizados genuínos, não apenas teórica, mas essencialmente prático.

Observem a sábia Serpente e escutem o som de seu rastejar. Aprendam a trocar de pele e a ressurgir como o venerável Dragão. E assim seremos como Deuses no Vale das Sombras.

FFF

Bem e mal são os preconceitos de Deus, dizia a serpente“.
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Ilustração por: The Art of Valin Mattheis

 

Notas:

(1) Trecho da música “Pale Enchantress” da banda Tristania;

(2) Friedrich Nietzsche.

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